Com múltiplas funções em épocas de crise, a arte é fundamental para ajudar a humanidade a atravessar, documentar e transformar a sua história
Crises sanitárias, de saúde e econômicas, entre outras, fazem com que o caos e as incertezas tomem conta da sociedade. No contexto atual, em que a pandemia de COVID-19 assola a humanidade, a ordem rotineira das vidas das pessoas sofre com rupturas e angústias. Em tempos como os atuais, o medo e as mudanças de hábitos podem se transformar em arte, o que já aconteceu inúmeras outras vezes na história da humanidade. Inspiradoras, belas, incômodas, ou não, muitas obras de muitos artistas contemporâneos já têm como tema a atual pandemia e, assim, a própria arte tem se modificado. Porém, qual de fato é o papel da arte para a sociedade neste momento? Há apenas uma resposta para essa questão?
Que a arte é inerente ao ser humano, não restam dúvidas. Sabemos que desde a pré-história o homem fazia uso de pinturas em paredes de cavernas, feitas com tintas extraídas de plantas ou sangue de animais, como forma de expressão. Exatamente por isso, em épocas de grandes rupturas, como a que estamos vivendo atualmente, os produtos culturais e artísticos inevitavelmente refletem as incertezas da sociedade, acompanhando a história e representando-a sob diferentes perspectivas e percepções.
Não é de hoje que períodos de crise como pandemias e guerras terminaram por inspirar artistas a criarem obras sobre os impactos das dificuldades nas vidas das pessoas. Foi durante a quarentena da peste bubônica na Europa que William Shakespeare escreveu duas de suas grandes obras: “Rei Lear” e “Macbeth”. A inspiração para uma das mais importantes obras da história da arte, o quadro “Guernica” de Pablo Picasso, foi a Guerra Civil Espanhola. Durante o período de isolamento imposto pela peste negra, no século XVI, o poeta Giovanni Boccaccio escreveu “Decamerão”, uma de suas mais famosas obras, que reúne contos sobre jovens que saem de suas cidades e se isolam em no campo para fugir da doença.
Para além da relevância histórica de retratar os caminhos e percalços da humanidade, a arte também assume a função de alimentar a alma e gerar alívio em momentos complicados. Seja por meio da dança, música, cinema, poesia, pinturas, e quaisquer outras manifestações artísticas, é ela quem ajuda a tornar mais leve os períodos mais difíceis, entretendo, distraindo e levando leveza à vida das pessoas. A arte tem poder transformador de ajudar o ser humano a descobrir o mundo, mudar o olhar sobre ele e abrir espaço novos caminhos.
Se engana, porém, quem pensa que é apenas para a alma que a arte faz bem. Um estudo realizado no Reino Unido concluiu que 66% dos clínicos gerais acreditam que as artes de fato desempenham uma função positiva na prevenção e tratamento de doenças. Tanto que, em 2014, foi criado no país o All-Party Parliamentary Group on Arts, Health and Wellbeing (Grupo Parlamentar Multipartidário em Artes, Saúde e Bem-Estar, em tradução livre), cujo objetivo é aumentar a conscientização sobre os benefícios que a arte pode trazer para a saúde e o bem-estar.
Expressar sentimentos, angústias, tristezas, felicidades, entreter e aliviar, resgatar histórias e até mesmo curar são finalidades fundamentais das mais diversas manifestações artísticas e jamais devem ser subestimadas. A arte nunca é supérflua ou superficial. Ainda assim, o papel social da arte na sociedade moderna transcende tudo isso. Apesar de estar constantemente associado ao belo, o conceito de arte é subjetivo, e sempre discutível. Por meio da arte é também possível conscientizar, fazer protestos e denúncias. Toda obra pode ter o poder de mudar uma pessoa e consequentemente transformar a sociedade por meio da transformação de indivíduos.
Os artistas populares, que em teoria não tiveram acesso a determinados padrões de cultura e muitas vezes são marginalizados, por exemplo, produzem obras com diferentes simbologias, que muitas vezes jogam luz sobre temas importantes como a injustiça social, econômica e política. Nesse sentido a arte ganha função de reestruturação da humanidade, revisitando fatos dentro de diferentes contextos históricos e expondo incômodos que podem ser transformadores. Desde sempre a arte e a cultura têm esse papel fundamental na produção de conteúdo e conhecimento, como uma inquieta ferramenta política, essencial para a construção de uma sociedade crítica, capaz de dar voz ao povo e suas denúncias.
Durante a pandemia de COVID-19, no Brasil e em todo mundo incontáveis artistas levaram ainda o papel social da arte a um outro nível, ainda mais palpável, transformando-a em propósito. Foram inúmeros e diversos os projetos que reuniram fotógrafos, designers, músicos, atores e artistas plásticos, entre outros, para com seu trabalho angariarem fundos para as pessoas mais afetadas pela crise. Desde as lives de música, passando por leilões beneficentes e performances online, até venda direta de obras com o intuito de ajudar ONGs e comunidades inteiras, não faltaram ações que transformaram arte em pratos de comida, roupas e recursos para quem mais precisa.
Portanto, a arte pode e deve assumir diferentes papéis de suma importância na sociedade em tempos de crise. Não há apenas um caminho para que isso aconteça. Como bem definiu o escritor japonês Haruki Murakami, um dos maiores da atualidade: “Responder criativamente à tragédia é enfatizar o que há de bonito sobre humanidade. Esse é o nosso tipo de ativismo. Você pode escolher expressar sua esperança pela humanidade ou seu desespero sobre o estado do mundo por meio de seus dons, não necessariamente políticos. Você não precisa marchar se não estiver disposto e ainda assim você pode contar com a sua contribuição criativa no combate”.